ALCANET    MINDE-ONLINE    JAZZMINDE    VITORIA M    ARQUITEK    BV MINDE    XARALES
CICLO BTT     NET COMPUTERS     DISTINUS    SKA-NEVASSE    ACTUAL X    BÉU-BÉU

28 setembro 2006

Como Nascem as Viagens



À primeira vista, a coisa funciona como numa corrida de espermatozóides de filme antigo do Woody Allen. Milhões de sementinhas de viagens estão vivas e permanentemente saltitantes, prestes a sair em disparada para ver qual consegue fecundar as suas férias. Cada uma dessas sementes contém uma viagem distinta, de características únicas. Todas enfrentam um mesmo obstáculo: a incrível lentidão do ciclo de produção de férias. Indivíduos adultos que trabalham, coitados, não têm mais do que 30 dias férteis para viagens durante o ano -- fora um ou outro espasmo em feriadões e fins de semana.

As semelhanças param por aí. Ao contrário dos espermatozóides, que gozam (perdão) de uma certa igualdade social, as viagens obedecem a uma hierarquia fortemente estabelecida. As mais poderosas formam uma oligarquia fechadíssima, que acaba determinando as feições das férias de populações inteiras.



Algumas delas -- as clássicas: à Europa, às Pirâmides, à Muralha da China, ao Taj Mahal -- são tão antigas, que já vêm impressas no DNA de qualquer candidato a viajante. Outras viagens, de tão repetidas, acabaram incorporadas à cultura específica de povos, tribos e bandos: a migração para o litoral no verão e para a serra no inverno, a lua-de-mel em Veneza (ou em Poços de Caldas), os ritos de iniciação à Disney e a Nova York, o réveillon na praia da hora da Bahia. Existem também as viagens que não são ditadas pelo instinto nem pelo meio ambiente, e sim pelo mercado: de repente desencavam um destino, inventam um pacote, convidam dez jornais e revistas para colocar o lugar no mapa e, quando você percebe, está quase embarcando. Todas essas viagens têm algo em comum -- foram concebidas à sua total revelia.



Além delas, ainda existe uma outra categoria, que oferece um infinito de possibilidades: as viagens que nascem inteiramente na sua cabeça. Se bem que... conceber é uma coisa. Dar à luz são outros quinhentos (reais, dólares ou euros -- você decide).

Olhando sob um ponto de vista prático, toda viagem que consegue efetivamente vir ao mundo é fruto do relacionamento -- passageiro, por definição -- entre Tempo e Dinheiro. Se hoje viajamos menos do que antigamente, é porque que está cada vez mais difícil conciliar a agenda do Tempo (que anda permanentemente ocupado) com a disponibilidade do Dinheiro (que deu para se fazer menos e menos acessível). Às vezes o Tempo fica aí, sobrando, mas quem diz que o Dinheiro comparece? Outras vezes (mais raras, vamos ser sinceros), o Dinheiro está fogoso e cheio de idéias, mas o Tempo diz que está com dor de cabeça e se vira para o lado. Quando acontece de Tempo e Dinheiro se encontrarem dispostos e cheios de amor para dar, então o negócio é caprichar na música, na iluminação e no cardápio, para que dali nasça a melhor viagem que o seu tempo e o seu dinheiro possam encomendar.
Não que tudo precise ser assim tão papai-mamãe. Alguns dos melhores viajantes do mundo -- os mochileiros, os aventureiros e toda a admirável cambada de vagais itinerantes -- costumam ter muito tempo e quase nenhum dinheiro. (Por outro lado, uma ínfima minoria consegue fazer viagens em que a escassez de tempo é compensada pelo excesso de dinheiro. Mas como não é o meu caso e também não deve ser o seu, vamos prender este comentário entre parênteses.) Para nossa felicidade, ueba!, o encontro entre Tempo e Dinheiro só é necessário para deslanchar os procedimentos finais. Uma viagem pode (eu diria: deve) ser gerada muitíssimo antes de você saber quando o seu tempo e o seu dinheiro vão poder sair de férias juntos.

Voltemos, pois, às circunstâncias da concepção. Viagens podem ser desejadas ou indesejadas. (Podem ser abortadas, também.) Podem ser arranjadas. Podem ser adotadas, podem ser clonadas ou mesmo roubadas. Podem ser prematuras. Viagens podem até ser gêmeas (junte duas viagens numa só, e você saberá do que estou falando).



A viagem mais bonita, mais risonha e mais parecida com você, não há dúvida, é aquela que você concebe num acesso de curiosidade, euforia e rendição que um escritor mais romântico talvez descrevesse como "paixão". Nada se compara àquela viagem que você engravida de uma foto, de um filme, de uma comida, de um pensamento que passou perto. A gestação pode durar meses, anos, décadas -- até você conseguir que Tempo e Dinheiro se encontrem para os finalmentes. Mesmo se demorar uma eternidade, não importa. Pode ser que você não tenha saído do lugar, mas seu pensamento já embarcou.

Uma coisa é você viajar a Paris porque precisa ter o carimbinho da aduana francesa no seu passaporte. Outra coisa é você ir a Paris porque não pode mais viver sem saber o que é atravessar o Sena pelo Pont-Neuf, entrar na fila do sorvete de casquinha na île Saint-Louis ou pedir um expresso no café onde filmaram Amélie Poulain.
Num primeiro momento, as viagens que nascem na sua cabeça têm exatamente esse mérito -- o de dar um significado pessoal a viagens que todo mundo faz. Num estágio mais avançado, as viagens que nascem na sua cabeça acabam levando você a cantos do Brasil e do planeta que não estão no mapa dos outros. Somente as viagens que nascem na sua cabeça podem levar aos Lugares Que Você Não Precisa Conhecer.

E quais são os Lugares Que Você Não Precisa Conhecer? São aqueles que não fazem parte das viagens clássicas, nem das viagens que constam do repertório da sua turma, muito menos das viagens que aparecem nos anúncios das agências de viagem nos jornais de domingo. Não, não são os primeiros lugares para onde você viaja. Mas quer saber? Depois que você começa a ir a Lugares Que Você Não Precisa Conhecer, acredite, os Lugares Que Você Precisa Conhecer ficam bem menos interessantes. »



(No livro continua – com uma lista de 100 lugares que você não precisa conhecer)
Ricardo Freire in Viaje na Viagem